domingo, 28 de maio de 2017

Cool memories



Há uma cena no filme “O que mais desejo” (Kiseki, 2011) em que o personagem principal, um menino de 12 anos, entra no ônibus e pensa. Dizem lá os especialistas que por volta dessa idade nos tornamos capazes do pensamento abstrato e, no filme, o jovem Koichi, em meio a uma sucessão de acontecimentos que afetam a sua vida, simplesmente parou para pensar. A câmera do diretor Kore Eda registrou esse momento em uma cena simples, porém densa.

Chama atenção que nesse momento o menino está voltando da escola, e eu me pergunto se esse não é um dos momentos mais importantes na vida de alguém: ir e voltar da escola, principalmente nos seus primeiros anos. Ir de casa para a escola significa passar da esfera dos afetos domésticos para a da sociabilidade pública, e nunca é demais lembrar que a escola é o primeiro momento em que nos encontramos por conta própria, quando nem pai nem mãe podem nos resgatar de alguma situação. É o momento em que se começa a avaliar as coisas, a pensar nas consequências.

Me agrada pensar que o caminho da escola é longo, que deve ser feito e pé ou em transporte público, portanto que demandam um tempo que só pode ser preenchido pelo pensamento. Nesse sentido, ir de carro para a escola me parece um crime: significa ser despejado de uma esfera em outra subitamente, significa sentar em um banco de trás e fazer qualquer coisa para “passar o tempo”, significa suspender o pensamento e tornar indiferente a passagem do privado para o público. Me pergunto se ir a pé ou em transporte público para a para a escola não é a parte mais importante do dia escolar, seja sozinho, imerso em seus pensamentos, seja com alguém, com os pais, conversando, trocando ideias.

Com 12 anos de idade meus pais me informaram que eu já era grande suficiente para ir e voltar para a escola por conta própria, um percurso de pouco mais de um quilômetro a ser feito a pé em um bairro residencial e que eu faria nos próximos sete anos. Além de estar a sós com meus pensamentos, passei a conhecer detalhadamente o caminho e comecei a ter com a cidade e seus habitantes uma outra relação. Foi quando comecei a enfrentar o frio da manhã e o calor do meio dia, a densa cerração do inverno e as chuvas frias do outono. Foi quando vi a geada de 1979, que cobriu a cidade de branco, um fenômeno que jamais se repetiu. Foi quando a cidade passou por uma daquelas épocas de seca e, bem cedo pela manhã, cruzei na rua vazia com um senhor de idade indefinida, pele curtida de sol e com uma perna de pau, que muito me impressionou. Com forte sotaque nordestino ele cantava bem alto uma canção cheia de nostalgia, cujo refrão dizia “Tomara que chovaaaa.../ Dez dias sem paraaaaar..”.

Foi em uma dessas primeiras caminhadas, voltando para casa, que lembrei da aula de Biologia recém encerrada, quando o professor falou que as plantas são seres vivos. Isso me fez pensar , talvez pela primeira vez na vida, em que é a vida. Sabendo ser, sem dúvida, diferente de uma planta, realizei o momento cartesiano de perceber em mim uma consciência pensante, capaz de tomar conhecimento de si própria. O que me fez pensar nas possíveis ilusões a que essa percepção estaria sujeita. Na época, é claro, eu não tinha ferramenta conceitual alguma: pude pensar livremente, explorar as ideias sem amarra conceitual alguma, despreocupado de qualquer lógica que não fosse a do bom senso, e com a liberdade compensando (em muito) uma eventual falta de rigor. Aos doze anos, caminhando de volta para casa, fui filósofo pela primeira e única vez na vida.


domingo, 5 de fevereiro de 2017

Sotto la pioggia


Enuncio três equações para ajudar o pensamento:

+ 1 + 1 = 0

Trata-se de um procedimento bastante comum na forma como se pratica o debate hoje em dia, e que resulta em nada, absolutamente nada. É também expressão de um certo bom-mocismo bastante evidente nesses tempos de redes sociais e forte demanda por “curtidas” como forma de autoafirmação. Refiro-me ao veredito definitivo sobre um determinado assunto que, uma vez elaborado e ungido ao estatuto de consenso, passa a ser afirmado, reafirmado e reafirmado novamente. Inclui necessariamente juízos morais, e tem como efeito uma certa satisfação pessoal. “Sou uma pessoa bacana, comporto-me como a maioria civilizada em oposição aos outros”. Por um lado, está garantida a satisfação individual, por outro, o entendimento não avança sequer um milímetro – além de alimentar o maniqueísmo. Tudo é bacana, todos somos legais, todos estamos juntos... e formamos uma grande nulidade.

+ 1 – 1 = + 1

Trata-se aqui do primeiro passo na direção do entendimento, que me parece intimamente ligado à força da negação: diante do óbvio, a subversão; diante do pensamento de manada, sua negação. Reconhecendo-se o potencial imensamente criativo da negação, surgem alguns riscos: só existirá negação criadora de sentido se for elaborada contra uma unidade precisa. Ou seja, a negação sem objeto é nada:  – 1 = 0. Se no primeiro caso, mais acima, tínhamos a nulidade produzida pelo entusiasmo positivo, aqui se encontra a nulidade que resulta no silêncio, no fim da possibilidade de pensamento.

– 1 – 1 =  + n

Trata-se da negação da negação como forma de criação do entendimento. A Dialética Negativa. Muitas vezes penso que é a única forma de entendimento que nos foi dada como possível diante das nulidades que têm sido produzidas de diversas formas ultimamente. Reforço minha crença no seu potencial quando me deparo com a crise da verdade no novo século: se antes no debate havia a oposição teórica entre verdade x opinião, hoje em dia chegamos ao ponto de ver o embate descer no nível factual do confronto entre acontecimento x opinião. Cabe ao pensamento retomar sua forma negativa radical justamente como tentativa desesperada de se opor à política radical de hoje em dia que se alimenta da falsificação do acontecimento e da formação de consensos vazios.






quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Ainda a educação



Anos atrás, em visita à casa de meus pais – onde morei até o início da juventude – encontrei meu sobrinho, então com uns quatro anos de idade. Descíamos pelo elevador quando encontramos uma velha senhora, antiga moradora do prédio, que logo me saudou, “Quanto tempo” e “Conheci você pequenino e agora já está um homem feito” e, após uma olhada ao meu sobrinho, “Esse aqui é seu filho ?”. Querendo fazer graça com meu sobrinho e, ao mesmo tempo, tentando colocar o moleque diante de uma situação nova, menti, sorrindo: “É, esse aqui é meu filhinho”. Em seguida a senhora olhou para o moleque e perguntou: “Como é seu nome ?”. E ele, cujo nome é Lucas, respondeu na hora: “Mateus”.
Esse é o ponto. Não importa o quanto tentemos ensinar o que é certo o que é errado, as pessoas aprendem pelo exemplo. Após ser ensinado mil vezes que não se deve mentir, o moleque se viu diante de uma situação na qual a mentira estava autorizada, e participar da mentira inofensiva significaria construir um elo, uma cumplicidade com o tio. Intuitivamente, o moleque concluiu que estreitar laços afetivos era mais importante que seguir algum princípio. Ou ainda: a ordem ("não minta!") pode ser desobedecida em certas circunstâncias. Sem querer, o garoto estava aprendendo a ter discernimento.
A história acima serve para ilustrar uma grande preocupação: queremos ensinar uma coisa e acabamos transmitindo outra. O tom singelo, emancipador e quase libertário do relato  contrasta com os riscos, por exemplo, do que se ensina na escola, e de como isso pode ser entendido por alunos. Cito três exemplos:
1) Testes de múltipla escolha. Independente do conteúdo correto da resposta, longos anos resolvendo testes de múltipla escolha ensinam basicamente o maniqueísmo: diante dos problemas do mundo existe o que é certo e o que é errado e ponto final. Desaparecem as nuances e eu me pergunto se o maniqueísmo enlouquecido em que vivemos hoje em dia não tem a ver com duas gerações sucessivas de pessoas cuja experiência escolar nos decisivos anos da adolescência enfatizou os testes de múltipla escolha, bem  como a preparação para tais testes como fim último da atividade escolar.
2) Sistema de notas. Não aufere conhecimento, mas ensina que o desempenho humano pode ser expresso em valores numéricos, e esse é a finalidade da atividade, qualquer atividade. Basta uma intervenção racional (por exemplo, mais ou melhor estudo) para melhorar o desempenho, aumentar o índice numérico. A partir daí, abre-se caminho para o discurso da eficiência em detrimento da reflexão, dos meios em detrimento dos fins.
3) Apresentação dos conteúdos como uma série de objetos. Ensina que o mundo que nos cerca é formado por uma sucessão de objetos, à respeito das quais tomamos conhecimento: somos o sujeito que conhece, e acabamos perdendo a capacidade de considerar que, dentre os muitos objetos que nos cercam, também possam existir outros sujeitos. A possibilidade de identificação com esses objetos é escassa, pois nos foram ensinados de forma distante. Exemplo prático foi citado no post abaixo, sobre o ensino de ética em aulas de Filosofia: “ética” é mais um objeto distante, e a maior expressão desse distanciamento ocorre quando o aluno cola na prova de Ética.
4) Justificativa do conhecimento através do seu emprego prático. Trata-se do utilitarismo que esvazia o puro âmbito do saber. Aqui, o ensinamento principal é desinibir a ação, uma vez que esta deve ter como única reflexão prévia uma rápida consideração sobre os efeitos práticos de seus resultados.


No fundo criamos monstros.

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Da Razão Prática à Razão Eficiente



Ponto 1

A rede ferroviária alemã sempre foi uma maravilha. Modelo de eficiência, sempre teve como  característica fundamental o cumprimento dos horários e o bom funcionamento geral, e é assim desde sua integração, em 1866, quando foi essencial para o sucesso alemão na Guerra das 7 Semanas. Falando em conflitos, durante a Segunda Guerra Mundial, a rede foi posta à prova de forma absolutamente radical: em meio a ataques aéreos cada vez mais devastadores – que incluíam como alvo entroncamentos ferroviários e pontes – foi  mantido um alto padrão de eficiência. Engenheiros ferroviários estabeleciam previamente soluções de tráfego, os funcionários redobravam sua dedicação e faziam horas extras, os passageiros participavam dos esforços repensando suas rotas, os mecânicos adaptavam composições e os operários reconstruíam linhas danificadas em tempo recorde.

O resultado dessa mobilização foi um triunfo da eficiência: em 1943, mesmo em meio a condições altamente adversas, a média semanal de atrasos era semelhante à da época anterior a guerra. Claro, em meio ao tráfego, incluíam-se os trens de deportados, que levavam sua carga humana para os campos de extermínio, mas pouco importa, pois no que se refere ao funcionamento da máquina, tudo correu sem nenhum transtorno. E, convenhamos: aquele engenheiro ferroviário que puxou a alavanca, desviando a composição para a direção certa, nunca sequer viu um judeu deportado, e considerá-lo como cúmplice do extermínio parece ser um exagero. Ele apenas fez o que devia: foi e-fi-ci-en-te.

O ponto todo é esse. A eficiência só têm sentido se subordinada à reflexão, fundada em um pensamento ético que questiona seus fins. Sem a reflexão, a eficiência – tornada um fim em si mesmo – se presta aos maiores desvios e nos cega diante das piores atrocidades.

Ponto 2

O que se ensina na escola ? Qualquer pessoa com experiência escolar ou que simplesmente acompanhou o crescimento de uma criança, sabe que o conteúdo do que é ensinado vale bem menos do que os exemplos dados, ou a sociabilidade vivida na escola. Os conteúdos escolares aparecem diante de alunos como uma série de objetos, que vão sendo trocados na exata medida em que os professores se sucedem, um após o outro. Aprender esses conteúdos (para ir bem na prova etc.) é uma habilidade que os alunos desenvolvem rapidamente, mas poucos se identificam com o que é ensinado. Em outras palavras, ocorre uma cisão entre o objeto estudado e o sujeito estudante. Suspeito que a própria forma da escola estimula esse distanciamento que, seja qual for sua origem, é evidente. Os conteúdos ensinados não tocam os alunos e dificilmente promovem alguma identificação, e as tentativas de aproximar os conteúdos com o cotidiano dos alunos muitas vezes soam patéticas (por exemplo, o professor de Química que, ao final da aula, anuncia triunfalmente: “E é assim que funciona o detergente !, em meio a bocejos generalizados).

Um caso clássico é o da Filosofia, onde se estuda ética. Assunto tão vital abordado na sala de aula pode ser muito interessante, e não tenho dúvidas que muitos professores enriquecem as aulas e tentam tocar os sujeitos que formam sua “plateia” citando exemplos e propondo impasses éticos para discussão (“Se um médico sabe que matar uma pessoa salva a vida de duas outras, o que ele deve fazer?” etc.). Todavia, dificilmente se “ensina” ética a partir daí. No fundo, a única escolha ética real com a qual o aluno se depara em toda sua vida escolar é “Devo ou não colar na prova ?”, e aqui a ética formal não vai fazer nenhuma diferença.

O ponto todo é que o conteúdo dessa ou daquela proposição que é ensinada (“devemos ser sujeitos éticos” ou “devemos refletir antes de agir”) não vale nada em função da forma como se organiza a escola e de como se justifica o conhecimento.

Ponto 3

Nietzsche, em Aurora (§550):

Conhecimento e beleza. – Se as pessoas, como sempre fizeram, guardam sua reverência e seu sentimento de felicidade para obras de imaginação e dissimulação, não devem surpreender que se achem frias e desanimadas ante o oposto da imaginação e dissimulação. O deleite já vem com o mínimo passo ou progresso seguro e definitivo na compreensão, que da ciência atual já emana abundantemente e para tantos – nesse deleite não acreditam, no momento, todos aqueles que se acostumaram a deleitar-se apenas abandonando a realidade, saltando nas profundezas da aparência.  Eles pensam que a realidade é feia: mas não acham que o conhecimento até da realidade mais feia seja belo, nem que quem sabe muito esteja bem longe, enfim, de achar feio o imenso conjunto da realidade, cuja descoberta sempre lhe deu felicidade. Existe, então, algo belo “em si” ? A felicidade do homem que conhece aumenta a beleza do mundo e torna mais ensolarado tudo o que há; o conhecimento põe sua beleza não só em torno das coisas, mas, com o tempo, nas coisas; - que a humanidade vindoura dê testemunho dessa afirmação ! Enquanto isso, lembremos de um antigo saber: dois homens bastante diferentes, Platão e Aristóteles, concordaram que a felicidade suprema, não só para eles ou para outros homens em geral, mas em si mesma, até para deuses de altas venturas, consiste no conhecer, na atividade de um bem treinado entendimento que procura e inventa (não na intuição, como os teólogos e semiteólogos alemães; não na visão, como os místicos e tampouco no fazer, como todos os práticos). De modo semelhante julgaram Descartes e Espinosa: como devem ter fruído o conhecimento todos eles ! E que perigo para sua honestidade, o de assim tornarem-se panegiristas das coisas !


segunda-feira, 21 de julho de 2014

Drops



Copa é colorida

Quando menos se espera, uma multidão de estrangeiros anda por aí. E a cidade de São Paulo, pouco acostumada com a experiência, ganha novas cores. Colombianos no Veloso, japoneses na Liberdade (onde mais ?), alemães na Vila Mariana, norteamericanos mais ou menos por toda parte. Somando-se aos haitianos que começaram a chegar nos últimos meses e agora passam a encontrar trabalho por aí - fenômeno mais ou menos comum por onde ando - vejo uma cidade alegre e coberta de novas cores.

Copa tem uma cor só

Todos falaram das plateias da Copa, brancas como a Lua. Mas e as criancinhas que entravam junto com as seleções ? Uma multidão de pequenos arianos, com uma ou outra exceção. Como foram escolhidas essas crianças, houve algum critério ? Será que privilegiados ou poderosos em geral conseguiram furar esses critérios para nomear filhos, netos e sobrinhos ? Uma pista: aqueles dois ou três moleques grandes que vi, certamente pra lá dos 10 anos de idade, certamente furaram algum critério.

Copa é legal

A quantidade de jogos emocionantes e de jogadas de alta técnica empolgaram qualquer um, até mesmo os menos interessados no esporte. Os gols espetaculares, o destaque dos goleiros mesmo num torneio com muitos gols, as inúmeras tragédias homéricas - do guerreiro caiçara ferido com um joelhaço ao Apolo português desclassificado na primeira fase, do oriental canibal à deprimente epidemia de lágrimas que afligiu jovens adultos brasileiros -, tudo fez dessa Copa uma experiência inesquecível.

Copa é uma merda

O grande objetivo é a grana, que vem com a vitória. Para atingi-la vale qualquer coisa, e aqui entra aquele horrível jogo de cena que consiste em cavar faltas, dramatizar qualquer contato, puxar camisas, sair dando cotovelaços e por aí afora. O futebol transformou-se na grande arte de enganar os outros. Quando nosso ator mais habilidoso caiu gritando atingido por um joelhaço nas costas, a dois centímetros de distância de uma trágica paralisia, permaneci indiferente: já havia visto aquela careta de dor inúmeras vezes.

Cool memories

No começo, não dava bola para futebol: para o menino, futebol era para jogar na rua ou inspirar dramáticas partidas de botão. Quando me perguntavam o time, dizia, meio indiferente, “Corinthians”, talvez para ter mais amigos. Aos 11 anos, intuí que torcer de verdade para um time e acompanhá-lo seriamente era pré-requisito para ter algo parecido com uma “identidade”. Assim, meio aleatoriamente, tornei-me sãopaulino.

Veio a adolescência e as idas ao jogo de futebol, bem como as bandeiras, os ônibus lotados e os estádios – cheios sob o sol do verão e vazios nas noites de inverno. Porém logo percebi que mais torcia contra o meu time do que a favor: irritava-me ver o time querido jogar tão mal. Com os amigos, assistia outros jogos de outros times, e vibrava com boas jogadas e o bom futebol, independente da equipe. Logo, concluí que torcer era algo meio sem sentido, e passei a usufruir do futebol sem paixão clubística (um sintoma de irracionalidade do qual desconfio), e aqui encontrei meus melhores momentos com o futebol. Sendo assim, adorei os jogos da Copa e o 7 x 1 foi um dos jogos mais espetaculares que assisti em todos os tempos.

PS

Mais sem graça que chamar argentino de hermano, só mesmo chamar São Paulo de sampa.





quinta-feira, 12 de junho de 2014

Cool memories




O hábito é indissolúvel da experiência de habitar. (Heidegger)

  

Uma mudança equivale a meio incêndio, não apenas pela destruição provocada pelos profissionais encarregados do transporte, mas sobretudo pela fúria higienizadora que leva a abarrotar latas de lixo durante a preparação. Aqui não há lugar para sentimentalismos: objetos, fotos, cartas, memórias, tudo submerge diante da necessidade imperativa de criar espaço e poupar trabalho. Seria o racionalismo a causa última da leveza de espírito ?

Lembro daquela imagem descrita em um antigo obituário em The Economist: as memórias são como fotos esquecidas no fundo das gavetas. Com o tempo, elas vão ficando amareladas, em alguns casos até mofadas. Não raro, escorregam para trás da gaveta e nesse caso nunca mais lidamos com elas. Até que, na mudança, todas reaparecem. As últimas noites passadas no antigo lar são assombradas por inúmeros fantasmas.

Fotos eletrônicas tem a singularidade de serem transportadas em grande número dentro de práticos discos rígidos. Ou, melhor ainda: são preservadas na nuvem. Mas são fotos tiradas aos milhares, selfies irrelevantes, pratos de almoços “inesquecíveis” sobre os quais já nem lembramos onde foram ou na companhia de quem,  multidões de pessoas anônimas e sorridentes, paisagens de viagem indistintas: todas as praias são iguais, a décima segunda catedral gótica da semana já se confunde com a terceira ...ou seria com a quinta ?

O novo lar é branco, é frio. As paredes ainda estão nuas, os quadros permanecem embalados, encostados em um canto. O edifício parece desabitado: ainda não encontrei ninguém nos corredores, no elevador ou na garagem. Um toque inesperado de calor é a proximidade com a rua: ouço conversas de passantes, portões que se abrem e fecham, descubro que alguém no 32 pediu pizza, ouço a porta da padaria fechando.

Olhando os passarinhos que circulam pela pequena sacada – a vizinha invisível os alimenta com frutas – sigo seus voos incertos até os fios elétricos, até os galhos de uma ou outra árvore. Observando os pássaros dessa nova paisagem, vejo pousado lá no alto uma ave melancólica: uma jovem sentada na sua sacada, uns seis andares acima de mim do outro lado da rua, fuma seu cigarro e observa a paisagem silenciosa dos prédios no entorno: janelas sempre fechadas de ambientes climatizados, cujos moradores só saem à rua em carros provavelmente blindados com vidros escurecidos. Vão ao shopping, provavelmente.

Ligar o gás, conectar à internet, pintar a parede, entregar os móveis, instalar não sei mais o quê... Uma galeria proletária com toda a sua diversidade desfila diante desse espaço ainda estranho onde moro. Alguns são explicitamente corintianos. O eletricista, empolgado por voltar ao bairro, me mostra as fotos que tirou da famosa tempestade de granizo semanas atrás.

Acordo pela quarta manhã seguida no novo lar. Finalmente dormi bem: tive sonhos. Em breve, a moça que faz a limpeza voltará aqui. O jornal já é entregue habitualmente na porta de casa. O chuveiro do novo banheiro parece a nave Enterprise e, elétrico, emite um suave zumbido a cada banho. Recebo uma visita, conversamos, abrimos uma cerveja. A moça seis andares acima fuma novamente o seu cigarro. Lentamente, vou habitando o novo lar com memórias.

terça-feira, 8 de abril de 2014

Bem mais que cem anos



O mundo terrestre era visto como palco da luta entre as forças do Bem e as do Mal, hordas de anjos e demônios. Disso decorria um dos traços mentais da época: a belicosidade.

...escreveu sobre a Idade Média o professor Hilário Franco Júnior, “esse grande medievalista brasileiro” (como o chamou Jacques Le Goff, esse grande medievalista francês). Utilizo essa citação para retomar o tema do último post, sobre uma certa visão anacrônica de luta de classes, ao mesmo tempo maniqueísta, belicosa e fora do seu tempo.

Uma das características mais evidentes do movimento socialista mundial através da História é a sua falta de unidade. Nas palavras do professor Bucci, “a esquerda não consegue se unir nem para eleger síndico de prédio”. A divisão das esquerdas talvez seja fruto dessa visão maniqueísta que, ao identificar o proletariado como uma massa homogênea, busca desesperadamente ser o seu intérprete: dessa forma, todos os grupos pretendem expressar a verdade única do proletariado colocando-se na vanguarda da luta pela sua emancipação e, na prática, fragmentando a esquerda em mil pedaços. Não seria a multiplicidade das “verdades” expressas pelos vários grupos um sintoma da própria heterogeneidade de uma classe que, na verdade, seria múltipla ? Volto ao argumento do post anterior: talvez uma caracterização de classe social tendo como único referencial a matriz econômica seja expressão daquele reducionismo economicista tão característico de um marxismo ligeiro.

Além da divisão das esquerdas, também me parece evidente, na história, aqueles diversos momentos em que há convergência de interesses entre classes sociais. Ao invés de quebrar a cabeça buscando encontrar a fórmula que expresse a verdade do proletariado, não seria o caso de identificar a barbárie e reunir forças para combatê-la ? Se os socialistas e os, vá lá, liberais, tem como fundamento teórico e projeto último a emancipação dos homens, seja enquanto indivíduos ou enquanto coletividade, não seria o caso de assestar as baterias contra aqueles que, em número cada vez maior, apontam para o obscurantismo ? Por exemplo, vejo com perplexidade o crescimento da religiosidade intolerante e fanática. Esse movimento coloca em xeque a herança iluminista dentro da qual floresceu tanto o liberalismo quanto o marxismo, ambos fundados na razão emancipada. Enquanto uns falam de ricos contra pobres e casagrande  contra senzala, os Felicianos se locupletam.

Ao mesmo tempo, no caso brasileiro, um ideal republicano fundado na inclusão e aceitação – generoso o suficiente para dar conta da república liberal ou da república socialista – se vê eternamente ameaçado pelos grupelhos políticos oligárquicos, a máquina coronelística e corrupta que destrói qualquer ambição republicana. Sim, continuo me alinhando com aqueles que criticam a corrupção, uma vez que promove a falência do ideal republicano. (Por volta das Manifestações de Junho de 2013, certos grupos, estranhamente, afastaram da pauta a questão da corrupção, sob o curioso argumento segundo o qual não se pode manifestar contra a corrupção, uma vez que ninguém é a favor). Seja como for, só poderemos começar a pensar em uma sociedade emancipada no dia em que nos virmos livres dos Sarneys e Calheiros.

Encerro citando Marx, referindo-se a Malthus:

Sua maior esperança (...) é que a classe média aumente em quantidade e o proletariado trabalhador forme uma proporção constantemente diminuída do total da população (mesmo se ela crescer em termos absolutos) Esta é, de fato, a tendência da sociedade burguesa. (Teoria da Mais-valia, XVII, B)


Infelizmente, Marx não desenvolveu esse trecho final, sobre "a tendência da sociedade burguesa”. Mas pouco importa. Cada vez mais a discussão sobre socialismo me entedia. Cada vez que ouço coisas como “Qual o verdadeiro socialismo ?” ou “O modelo soviético foi verdadeiramente socialista” ?, sinto-me como algum membro da família Buendía. Provavelmente como Rebeca, arrastando por aí um saco de ossos.